Guia de Prescrição: Tratamento Clínico da Colelitíase com Ácido Ursodesoxicólico
A presença de cálculos biliares (colelitíase) é uma condição prevalente, mas apenas uma minoria dos pacientes evolui com sintomas ou complicações. Para um subgrupo específico, o tratamento clínico com ácido ursodesoxicólico (AUDC) oferece uma alternativa não cirúrgica eficaz, visando a dissolução química dos cálculos e a prevenção de sua formação. Este guia detalha os critérios rigorosos para seleção de candidatos e o protocolo de tratamento de longo prazo.
1. Diagnóstico e Critérios de Elegibilidade para Terapia Dissolutiva
O sucesso do tratamento clínico depende da seleção precisa do paciente e do tipo de cálculo. A terapia não é indicada para a maioria dos casos.
- Critérios de Inclusão (DEVEM ser todos preenchidos):
- Cálculos Radiotransparentes (de Colesterol): Confirmados por ultrassonografia (USG) e tomografia sem contraste (para excluir calcificação).
- Tamanho e Número: Cálculos menores que 2 cm e em número limitado (idealmente < 3). Cálculos flutuantes na USG são um bom prognóstico.
- Vesícula Biliar "Funcionante": Presença de visualização da vesícula na cintilografia hepatobiliar (HIDA scan) após estímulo com colecistoquinina, garantindo esvaziamento > 40-50%. Ou, na prática, vesícula pérvia e visível na USG, sem evidência de obstrução crônica do cístico.
- Paciente Assintomático ou com Cólica Biliar Leve/Infrequente, sem história de complicações (colecistite aguda, coledocolitíase, pancreatite).
- Motivação do Paciente: Para aderir a um tratamento longo (6-24 meses).
- Contraindicações Absolutas:
- Cálculos pigmentados (marrons/negros) ou com calcificação.
- Cálculos > 2 cm ou que ocupem mais de 50% do lúmen da vesícula.
- Vesícula não funcionante (vesícula em "porcelana", obliterada).
- História de complicações biliares agudas.
- Gravidez.
📌 Diagnóstico e Exames Pré-Terapia:
- Exame Inicial: Ultrassonografia de Abdome Total é o método de escolha para diagnóstico.
- Confirmação do Tipo de Cálculo: Tomografia de Abdome sem contraste para avaliar densidade dos cálculos. Cálculos com densidade < 100 UH são candidatos.
- Avaliação da Função Vesicular: Cintilografia Hepatobiliar (HIDA Scan) com CCK é o padrão-ouro. Na impossibilidade, seguir com critérios clínicos e de USG.
2. Prescrição Padrão: Terapia Dissolutiva de Longo Prazo
O tratamento é crônico e a dose é baseada no peso do paciente.
Prescrição Principal
Medicamento | Posologia e Cálculo de Dose | Duração e Monitoramento |
Ácido Ursodesoxicólico (AUDC) 300 mg - 120 comprimidos | Dose: 8-12 mg/kg/dia, dividida em 2 a 3 tomas. Exemplo Prático (Paciente 70 kg): Dose diária: 70 kg x 10 mg/kg = 700 mg/dia. Posologia: 1 comprimido (300 mg) após o café da manhã e 1,5 comprimidos (450 mg) após o jantar (esmagar meio comprimido) OU usar formulação de 250mg para ajuste fino. | Mínimo de 6 meses, podendo estender até 24 meses. Controle: Realizar USG abdominal a cada 6 meses para avaliar redução/desaparecimento dos cálculos. Suspender se não houver resposta após 12 meses. |
✍️ Instruções Padronizadas para o Paciente (Modelo):
"Este medicamento age dissolvendo lentamente as pedras na sua vesícula. Para funcionar, deve ser tomado todos os dias, sem falhas, preferencialmente após as duas principais refeições (café da manhã e jantar), pois a bile é liberada durante a digestão. O tratamento é longo e requer paciência. Você fará um ultrassom de controle a cada 6 meses para verificarmos o tamanho das pedras. Procure atendimento urgente se apresentar febre, dor intensa e constante no lado direito do abdome ou icterícia (pele amarelada)."
3. Alternativas Terapêuticas e Condutas Associadas
Cenário Clínico | Conduta Recomendada | Fundamentação |
Cólica Biliar Típica ou Complicações Agudas | Tratamento de Escolha: Colecistectomia Laparoscópica. A terapia clínica não é indicada. | Pacientes sintomáticos têm alto risco de recorrência de cólica e complicações (≥ 50% em 5-10 anos). A cirurgia é curativa. |
Cálculos em Colédoco (Coledocolitíase) | Conduta: Colangiopancreatografia Retrógrada Endoscópica (CPRE) para remoção dos cálculos, seguida de colecistectomia laparoscópica. | O AUDC não é eficaz para cálculos no colédoco, que apresentam alto risco de obstrução e pancreatite aguda. |
Paciente de Alto Risco Cirúrgico com Cálculos Sintomáticos | Considerar, como ponte ou alternativa definitiva: 1. Terapia com AUDC (se elegível). 2. Litotripsia Extracorpórea por Ondas de Choque (LEOC) + AUDC. 3. Dissolução por Contato Percutâneo (raro). | Reservado para casos selecionados onde os benefícios da cirurgia não superam os riscos. A LEOC fragmenta os cálculos, aumentando a superfície de ação do AUDC. |
Prevenção de Cálculos em Obesos Submetidos à Cirurgia Bariátrica | Profilaxia: AUDC na dose de 300 mg, 2x ao dia, durante a fase de rápida perda de peso (geralmente 6 meses). | A rápida perda de peso é um fator de risco conhecido para formação de cálculos de colesterol. O AUDC satura a bile e previne a nucleação. |
4. Por que este Protocolo é Seletivo e Específico?
✅ Ação Farmacológica Direta: O AUDC é um ácido biliar hidrofílico que reduz a secreção hepática de colesterol, dessatura a bile e promove a dissolução gradual dos cálculos de colesterol puro, além de estabilizar a membrana dos hepatócitos.
✅ Seleção Baseada em Evidência: Os critérios rigorosos (tamanho, composição, função vesicular) são derivados de grandes estudos clínicos que demonstram taxas de dissolução completa de 40-80% em pacientes cuidadosamente selecionados, com menor eficácia em cálculos maiores ou vesículas não funcionantes.
✅ Abordagem de Longo Prazo com Monitoramento Definido: Reconhece que a dissolução é um processo lento (meses a anos) e estabelece parâmetros objetivos (USG seriado) para avaliar a resposta e evitar tratamentos prolongados e ineficazes.
✅ Ênfase nos Limites da Terapia Clínica: Deixa claro que a colecistectomia laparoscópica permanece o padrão-ouro para a maioria dos pacientes sintomáticos, posicionando o AUDC como uma alternativa válida apenas para um nicho específico, conforme diretrizes das sociedades de gastroenterologia e cirurgia.