Guia de Prescrição: Manejo Estratificado da Diarreia Aguda e Gastroenterite Viral
A diarreia aguda é uma das principais causas de morbidade global, com abordagem terapêutica que varia desde suporte hidroeletrolítico simples até terapia antiparasítica ou antiviral específica. A reidratação oral é a pedra angular do tratamento, enquanto o uso de antimicrobianos deve ser reservado para casos específicos. Este guia oferece protocolos claros para diarreia aguda inespecífica e para gastroenterite viral confirmada ou suspeita.
1. Diagnóstico Clínico, Classificação e Avaliação de Gravidade
A abordagem inicial deve focar na avaliação do estado de hidratação e na identificação de sinais de alarme.
- Diarreia Aguda Inespecífica: Aumento no número de evacuações (≥3 em 24h) ou diminuição da consistência das fezes (líquidas ou pastosas), com duração inferior a 14 dias. Pode ser acompanhada de náuseas, vômitos, dor abdominal e febre baixa.
- Gastroenterite Viral Aguda (GECA): Diarreia aquosa, explosiva, frequentemente acompanhada de vômitos, cólicas e febre. Causada principalmente por Rotavírus, Norovírus e Adenovírus.
📌 Avaliação do Estado de Hidratação (Crucial, especialmente em crianças):
- Leve/Moderada: Sede aumentada, mucosas levemente secas, turgor cutâneo normal ou levemente diminuído.
- Grave: Letargia ou irritabilidade extrema, olhos profundamente encovados, mucosas muito secas, turgor cutâneo muito diminuído ("prega cutânea" persiste por >2 segundos), choro sem lágrimas, fontanela deprimida (em lactentes), taquicardia, oligúria.
📌 Sinais de Alarme que Exigem Investigação Imediata:
- Diarreia com sangue (sugere infecção bacteriana invasiva como Shigella, Salmonella, Campylobacter ou E. coli enterohemorrágica).
- Febre alta (>39°C) persistente.
- Desidratação grave (como descrita acima).
- Dor abdominal localizada ou intensa que não cede após evacuação.
- Pacientes imunossuprimidos, idosos frágeis ou lactentes <6 meses.
- Diarreia persistente (>7-10 dias) ou com perda ponderal importante.
2. Protocolos de Prescrição por Cenário Clínico
O tratamento é guiado pela suspeita etiológica e pela idade do paciente. A Terapia de Reidratação Oral (TRO) é a base para TODOS os casos.
TABELA 1: Protocolos para Diarreia Aguda Inespecífica (Adultos e Crianças)
Cenário Clínico | Regime Terapêutico | Posologia e Instruções Essenciais |
DIARREIA AGUDA (1) - Adultos (Suporte Básico + Probiótico) | 1. Soro de Reidratação Oral (SRO) 2. Probiótico (Saccharomyces boulardii ou Lactobacillus spp.) | SRO: Diluir 1 envelope em 1L de água potável. Ingerir à vontade, mas com meta de 30-50 mL/kg nas primeiras 4h, mais volume igual às perdas diarreicas. Probiótico: Tomar conforme posologia do produto (ex.: 1 envelope/dia). Auxilia na restauração da microbiota. |
DIARREIA AGUDA CRIANÇAS (Foco Exclusivo na Hidratação) | 1. Soro de Reidratação Oral (SRO) | SRO: ÚNICO tratamento necessário na maioria dos casos. Oferecer em pequenos goles frequentes. Volume: 50-100 mL/kg ao longo de 4h para desidratação leve/moderada. Continuar oferta até a diarreia cessar. Manter a alimentação habitual (leite materno, fórmula, dieta sólida apropriada). |
TABELA 2: Protocolos para Gastroenterite Viral Aguda (GECA) Confirmada/Suspeita
Cenário Clínico | Regime Terapêutico | Posologia e Instruções Essenciais |
GECA VIRAL - Adultos (Antiviral Específico) | 1. Soro de Reidratação Oral (SRO) 2. Nitazoxanida 500 mg | SRO: Como na Tabela 1. Nitazoxanida: 500 mg (1 comp.) VO de 12/12h por 3 dias. Possui atividade contra Rotavírus e Norovírus. Pode reduzir a duração dos sintomas em 1-2 dias se iniciada precocemente (<72h do início). |
GECA VIRAL EM CRIANÇAS (Antiviral com Cálculo por Peso) | 1. Soro de Reidratação Oral (SRO) 2. Nitazoxanida Suspensão Oral | SRO: Como na Tabela 1. Nitazoxanida: Dose: 1,5 mL (30 mg) para cada 5 kg de peso, VO de 12/12h por 3 dias. Exemplo (criança 15 kg): (15 kg / 5 kg) * 1,5 mL = 4,5 mL de 12/12h. |
✍️ Instruções Padronizadas para o Paciente/Família (Modelo):
"O mais importante é prevenir a desidratação. Tome/Ofereça o soro caseiro ou SRO a cada evacuação diarreica ou episódio de vômito. Ofereça em pequenas quantidades e com frequência. Continue alimentando-se/oferecendo comida normalmente, evitando apenas alimentos muito gordurosos ou doces. O medicamento (probiótico ou nitazoxanida) deve ser usado conforme prescrito. Procure atendimento URGENTE se: a criança ficar muito prostrada ou irritada, os olhos ficarem fundos, parar de urinar, ou se houver sangue nas fezes."
3. Ajustes, Medidas de Suporte e Condutas Específicas
Cenário Clínico | Ajuste na Conduta | Fundamentação |
Desidratação Grave ou Vômitos Incontroláveis | Hidratação Venosa Hospitalar. Utilizar Ringer Lactato ou Solução Fisiológica 0,9%. Em crianças: bolus de 20 mL/kg. | A via oral está comprometida. A correção volêmica rápida é uma emergência médica. |
Suscpeita Forte de Etiologia Bacteriana (febre alta, sangue/muco nas fezes) | Considerar antibioticoterapia empírica dirigida: • Azitromicina ou Ceftriaxona (para Shigella, Campylobacter). • Evitar: Fluoroquinolonas em crianças e uso rotineiro. | O tratamento antibacteriano é específico e deve ser guiado por epidemiologia e, idealmente, cultura. Uso indiscriminado pode piorar infecções por E. coli O157:H7. |
Cólica ou Dor Abdominal Intensa | Hioscina Butilbrometo (escopolamina butilbrometo) 10 mg VO (adulto) para cólica. EVITAR Loperamida em crianças e em diarreia febril ou com sangue. | Antiespasmódicos podem aliviar sintomas. A loperamida (inibidor de motilidade) é contraindicada em diarreia inflamatória/infecciosa, pois pode precipitar megacólon tóxico. |
Diarreia do Viajante | Preferência: Azitromicina 1g dose única ou 500 mg/dia por 3d. Alternativa: Rifaximina 200 mg 3x/dia por 3d (não eficaz para infecções invasivas). | A etiologia mais comum é bacteriana (E. coli enterotoxigênica). A escolha do antibiótico considera o perfil de resistência local. |
Medidas Preventivas Gerais | HIGIENE: Lavagem rigorosa das mãos com água e sabão. ÁGUA: Consumir apenas água filtrada, fervida ou tratada. ALIMENTOS: Lavar bem frutas/legumes, consumir carne bem cozida. | A prevenção da transmissão fecal-oral é fundamental, especialmente em surtos e para crianças. |
4. Por que Esta Abordagem Estratificada é a Mais Racional e Segura?
✅ Hidratação como Prioridade Absoluta: Coloca a Terapia de Reidratação Oral (TRO) no centro do manejo, uma intervenção de baixo custo e altamente eficaz que salva vidas, especialmente na população pediátrica.
✅ Uso Racional de Antimicrobianos: Restringe o uso de nitazoxanida aos casos de suspeita de GECA viral (onde há evidência de benefício) e evita o uso indiscriminado de antibióticos na diarreia aquosa comum, combatendo a resistência bacteriana.
✅ Diferenciação Clara entre Adultos e Crianças: Reconhece que o manejo pediátrico exige maior vigilância para desidratação, cálculo preciso de dose por peso para medicações específicas e contraindicando formalmente fármacos como a loperamida.
✅ Ênfase em Sinais de Alarme e Prevenção: Educa o profissional e o paciente sobre os sinais que exigem investigação mais aprofundada (sangue, febre alta) e reforça medidas de higiene e saneamento como parte integral do tratamento.